Affonsinho

Fios inter-ligados: cifras e letrinhas de Affonsinho

Sunday, May 21, 2006

PODE SER OU TÁ DIFÍCIL ?


Por Affonsinho


O dia inteiro era assim : todo mundo que passava pela mal-humorada senhora tinha que fazer a tradicional perguntinha :
- E aí, dona Didi, pode ser ou tá difícil ?
Mas ela parecia não ligar. Nem sequer olhava. Aliás, só virava o rosto quando precisava atender alguém. Aí sim, dava de ombros com o maior prazer. Alguns diziam que ela já deveria ter se aposentado, que o problema era o cansaço. Mas outros funcionários, mais antigos, afirmavam que o ranzinzar da brava senhora era de outros carnavais, desde os seus tempos de mocinha. E foram colocar a moça justamente no guichê de informações !
Um belo dia de sol, estava eu preenchendo uns formulários no balcão de dona Didi quando surge um rapaz aparentando uns dezoito anos, office-boy de alguma empresa, ainda ganhando mais experiência do que salário. A cena que presenciei nesse momento poderia muito bem fazer parte de um velho programa humorístico de Chico Anísio.
O aprendiz de executivo, ainda meio zonzo com tantos documentos e nomes difíceis de formulários, requerimentos etc. colocou sua pesada mochila sobre o balcão, tirou os headphones do ouvido, desligou o rap que tocava num volume ensurdecedor e deu início a seu inseguro questionário :
- Boa tarde. O que tenho que fazer para dar entrada nestes documentos ?
Dona Didi, em silêncio, mais que apressadamente, jogou algumas folhas sobre a mochila do jovem e aumentou o volume de sua televisãozinha portátil, acomodada sobre um banquinho do lado de dentro do guichê.
O rapaz não entendeu direito, mas deu uma olhadinha nos papéis, na tentativa de captar alguma mensagem. Como ele sabia ler, pude observar uma certa tranquilidade em sua expressão quando identificou as primeiras linhas do formulário. As questões não pareciam tão difíceis. O moço desceu os olhos sobre as letrinhas, mas para não levar bronca do patrão e fazer o serviço direitinho, preferiu resolver suas dúvidas ali mesmo com a responsável pelo setor de informações. E começou :
- Por favor, aqui onde está escrito nome é pra eu colocar o meu nome ou o do chefe ?
Dona Didi fingiu que não era com ela ...
Então o jovem repetiu, um pouquinho mais alto, mas com delicadeza :
- Senhora, onde está escrito ...
A mulher se levantou apressadamente de sua cadeirinha de estofamento já meio esburacado e, olhando para mim, que não tinha nada a ver com a história, quase berrou, já sem uma gota de paciência :
- É, meu filho ! É o nome do requerente ! Por acaso é você o requerente ?!
Virou-se de lado e me colocou novamente na cena :
- Moço, o senhor joga no bicho ? Pode jogar hoje porque vai dar burro !
Olhei para ela assustado e com um sorriso meio sem graça, fingindo não ter entendido a grosseria.
O moço tirou um papelzinho do fundo da mochila e, um pouco atrapalhado, copiou o nome do patrão. Não tinha entendido muito bem a informação da irritada senhora, mas escolheu o nome do mais poderoso, ou seja, o do chefe. E em seguida perguntou novamente :
- Ô dona, aqui no endereço é o mesmo do nome ou é o lá da firma ?
Dona Didi deu uma bufada deixando escapar alguns perdigotos, franziu ainda mais a testa e esbravejou, um pouco mais alto, olhando nos meus olhos :
- Ó, moço, pode ir correndo, viu ? Hoje não tem erro ! Pode apostar no burro que o senhor vai ficar rico !
E falou, já gritando, na orelha do rapaz :
- É sim, meu filho, é o endereço do nome que você já escreveu em cima ! Pelo amor de Deus ...
O humilde rapaz copiou, já meio trêmulo, o endereço do papelzinho. Não perguntou nada sobre o bairro, o cep, a cidade e o estado, talvez com medo que o burro tirasse mesmo a sorte grande naquele dia. Mas quando recebeu o boleto com a marca do banco onde deveria pagar a taxa, como ainda tinha muito serviço naquela tarde ensolarada, resolveu arriscar :
- Esse boleto pode ser pago aqui, com a senhora, ou é só no banco ?
E recebeu :
- Se você quiser me pagar, meu filho, até pode, eu recebo, mas vai ter que ir ao banco, bem depressa, pedir à moça do caixa para trazer o computador dela até aqui. Só assim vou poder te dar o recibo. Alí em cima está escrito o que ? Veja bem : in-for-ma-ções ! Eu lá tenho cara de caixa de banco ?!!!
Fiquei pensando como seriam os rostos dos caixas de banco ...
O moço, coitado, já completamente surrado pelos berros da impaciente informante, não reagiu. Continuou seu trabalho humildemente e com a boca bem fechada. Preferiu correr o risco de errar. Talvez uma bronca do patrão não fosse tão bronca assim como as que estava levando da impiedosa senhora. Terminou o preenchimento dos formulários, entregou-os à dona Didi e já ia embora quando, de repente, voltou-se para mim e sussurou :
- Moço, não joga no burro não. Pode acreditar, hoje vai dar é onça na cabeça ! E daquelas com um dentão de todo tamanho !
Seu Almeida, um funcionário bem antigo que vinha chegando da rua com um cafezinho no copo de plástico, sem saber de nada, perguntou, sorrindo :
- E aí, dona Didi, pode ser ou tá difícil ?

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