Affonsinho

Fios inter-ligados: cifras e letrinhas de Affonsinho

Sunday, May 21, 2006

A OUTRA MARCA DO ZORRO


por Affonsinho


Naquele tempo quase todas as manhãs eram assim : papai acordava, começava suas atividades do dia e lá estava eu, do alto de meus cinco anos, tagarelando, sem pausa, atrás dele.
Me lembro que ele se levantava da cama e saboreávamos o café da manhã juntos. Em seguida tomava seu banho, passava o tradicional perfume, que até hoje faz com que nos lembremos dele e, só então, começava a se aprontar para o trabalho. Vestia primeiro a cueca, depois calçava as meias e os sapatos e, em seguida, colocava a camisa do terno (sempre com elegantes abotoaduras de ouro). O paletó, a calça e a gravata permaneciam no cabideiro aguardando, calmamente, a hora de serem chamados para a labuta.
Nesse meio tempo, entre nossas brincadeiras e a rua, que invariavelmente o levava de mim, meu pai sorria, dava instruções, falava alto ao telefone e planejava seu dia, sempre muito agitado.
Circulava com seu "uniforme" : camisa, cueca, meia e sapato, tranquilamente por nosso apartamento de Copacabana e acho que alguns vizinhos podiam até ter reparado, uma vez ou outra, aquele homem "calorento" passeando em sua casa sem maiores maldades, mas acredito que nem ligavam muito. No Rio de Janeiro, o excessivo calor, parece esfriar a cabeça das pessoas com relação a alguns falsos pudores e acredito que quase todos vivem mais à vontade.
Numa bela manhã de sol, uma cena, digna de cinema, acabaria marcando para sempre a vida de nossa família e de nossos vizinhos mais curiosos.
Um dia comum, igual aos outros : papai com seu uniforme e eu atrás, tagarelando . . . De repente, ao passarmos por um dos quartos onde meu irmão mais velho costumava dormir depois de suas noitadas, o chamado "escritório", onde ficava a biblioteca, eu e papai nos deparamos com um dos objetos mais emocionantes da casa, na visão de uma criança, é claro : uma enorme e fabulosa espada brilhante usada por ele nos antigos e elegantes desfiles da Polícia Militar de Minas Gerais. A espada tinha sido um presente de meu avô materno e era guardada com muito carinho.
Supliquei então a papai para que me mostrasse aquela maravilha brilhante e ele, com seu característico entusiasmo, tirou-a da bainha, foi até seu guarda-roupa e passou a mão numa velha casaca usada na festa de inauguração de Brasília. Pronto, já estava apto a realizar sua surpreendente transformação !
A partir daquele momento ele seria o melhor e mais fascinante Zorro do mundo e eu seria apenas o seu maior fã. Papai saiu pulando pelo apartamento de casaca, cueca, meia e sapato, empunhando aquela espada brilhante e atacando, sem dó, as centenas de inimigos que apreciam em nosso caminho.
Uma janela gigantesca cobria toda a frente do nosso primeiro andar, que dava para a movimentada Rua Constante Ramos. Do outro lado da rua, prédios se escoravam uns nos outros, bem ao estilo de Copacabana, e outras grandes janelas, cheias de vizinhos, faziam frente para a nossa sala.
Por um motivo extremamente importante, fomos parar exatamente sobre o chão de mármore que sustentava as janelas gigantes da sala. Papai tinha descoberto que os efeitos especiais que precisava para que o show fosse completo estavam todos ali. Cada vez que batia a espada contra o mármore do chão o impacto produzia fagulhas reluzentes que, para mim, mais pareciam raios de fogo, iguais aos avançados efeitos especiais dos filmes de hoje.
Meus olhos cresciam assustadoramente de tamanho enquanto os golpes desferidos contra aquele inimigo branco que cuspia fogo iam aumentando a intensidade. Meu pai, ou melhor, meu Zorro particular, gesticulava, pulava nas cadeiras da sala, gritava e atacava o chão numa coreografia digna de um Ballet Russo (ou seria Mexicano ?) até que em um de seus ágeis saltos se viu de frente para uma grande e vibrante platéia : dezenas de vizinhos dos prédios em frente assistiam ao espetáculo gratuito com toda atenção e acho que até torcendo para que o valente Zorro de Copacabana derrotasse o terrível vilão de mármore !
E então foi um baita susto ! Naquele momento meu pai voltou a ser adulto e se lembrou que já era um "senhor" de quase quarenta e nove anos de idade, pai de três filhos, ex chefe da Casa Militar do ex Governador de Minas Gerais, Dr. Juscelino Kubitscheck e também Sub Chefe da Casa Civil do mesmo JK, na Presidência da República.
E agora, José ? Agora não tinha mais jeito ! A única opção viável seria mesmo sair de fininho, deixar a vergonha pra lá e incluir, com o maior orgulho em seu currículum :
Atuou também como o maior e melhor Zorro do mundo, numa manhã qualquer de Copacabana, oferecendo lições de alegria aos vizinhos e deixando seu filho caçula, de cinco anos de idade, tatuado para o resto da vida, com a famosa marca do "Z", de - criança feliZ !!

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